terça-feira, 1 de maio de 2012

Acordei com o pé esquerdo


Acordei com o pé esquerdo

            Neste país o ditado popular se confirma de que “somente ladrão de galinha é preso”.  No meu caso, não sou ladrão, nem assassino, nem maníaco ou pedófilo, mas acordei, definitivamente, com o “pé esquerdo”, como dizia minha santa mãezinha, que hoje está nos braços de Deus.
            Foi um dia como tantos outros saí do trabalho no entardecer. Claro, o trânsito me pegou na Radial Leste, havia um carro parado a meio fio da ciclovia com o pneu furado e dois outros motoristas pararam para lhe ajudar. Enquanto esperava os bons samaritanos concluírem a boa ação, liguei o rádio a fim de ouvir as últimas notícias.
            “Mulher esfaqueia companheiro na porta do bar”.
            “Recém-nascido é encontrado no banheiro do Metrô Itaquera”.
             “Jogo de futebol termina em pancadaria”.
            Notícias como essas nos fazem pensar em quantas desgraças ocorrem por aí e como ninguém se importa com as vítimas, alguns acabam presos, outros impunes. É por isso que não tenho mulher, nem filhos e assisto aos jogos de futebol em casa, em Pay-Per View, mais cômodo investir na televisão a cabo a ir aos campos de futebol.
            Finalmente cheguei ao condomínio, o porteiro me acenou com a cabeça e me deixou entrar. Subi as escadas até o quarto andar – ainda não consertaram o elevador - apartamento quarenta e quatro. Fiz o que qualquer solteiro faria: coloquei a comida congelada no micro-ondas e me dirigi ao banheiro para retirar de mim o cansaço e a poluição. Saí do banho, jantei assistindo ao Discovery, quase cochilei no sofá e fui para a cama, meio estremunhado, quase atropelando as garrafas de cerveja pelo caminho.
            O despertador do celular tocou às quatro da manhã, abri com dificuldade os olhos, peguei-o e conferi a hora do meu despertar, levantei-me para trabalhar. Fui ao banheiro, escovei os dentes, lavei o rosto e, enquanto ajeitava os cabelos de fronte ao espelho ouvi a campainha tocar. Foi um toque leve aos ouvidos, estranhei, já que ultimamente as pessoas tem chegado em casa tão apressadas que mal trocamos prosa fiada. Saí do banheiro e caminhei à porta sorrateiramente, pois suspeitava de um mau presságio. Quem poderia ser às cinco da manhã? Poderia ser alguém me dizendo do corredor “Não é ninguém, é o padeiro!”, como a personagem de Rubem Alves, mas o dispensara havia um mês, decidi que tomaria café da manhã na padaria do Barbosa. E essa rotina já se repetia há um mês. Enfim, destranquei a porta e abri-a. Ninguém no corredor além de um corpo estirado ao chão em minha frente. Um homem trajando calças marrons e blusão azul, corpulento, deitado de bruços com as palmas para cima e mãos abertas, calçava botas sete léguas, nenhum conhecido que pudera me recordar. Olhei para os lados. Ninguém. Pensei em uma brincadeira de péssimo gosto, porém ao me abaixar e tocar no desconhecido senti-o frio e rígido.
            - Valha-me Deus! É um defunto. Sim, é verdade. Um defunto. E está bem na minha frente, na porta de meu apartamento. O que farei? Se eu ligar para minha tia dirá que bebi demais e estou vendo vultos, se eu ligar para o Francisco, me dirá que ainda é cedo e ele está sonhando com carneirinhos. Já sei, para o porteiro. Mas como vou explicar a aparição deste corpo? Não. Não.
            Enquanto pensava o que fazer, deixei a porta aberta e de súbito saltei para trás trêmulo e ofegante. Atrás de mim estava a mesinha de centro e sobre ela meu celular. Liguei para a polícia, como todo cidadão o faria. Descrevi o que fizera desde o momento em que acordei até o momento da ligação, não sei se explicara detalhadamente, lembro-me somente que despejei aos ouvidos da telefonista do 190 o meu desespero. Mandou-me continuar na linha e mal desliguei o celular, ouvi os silvos. Rastejei-me até o canto dos sofás ainda de pijama e chinelos e me encolhi desejando, imensamente, que tudo não passasse de um sonho.
            - Polícia! Polícia!
            Não conseguia me mexer, estava atônito, senti uns puxões pelos braços e alguém me arrastou com bastante força. Quando me dei conta do ocorrido, estava na delegacia em uma cela isolada dos demais presos. Levantei-me e consegui distinguir as vozes, pareciam o delegado e um carcereiro, que veio em minha direção, confessou-me que era um sujeito que devia dinheiro a um traficante da Cidade Tiradentes, fora deixado em minha porta, pois o assassino encontrou em um dos bolsos o meu endereço e o comprovante de débito bancário de uma pizza que pedira há três semanas. E destrancando a fechadura:
            - Pode sair, você está livre.
            E erguendo a cabeça, disse-lhe:
            - Hoje acordei com o pé esquerdo.

Por: Marcia Regina Tirollo, grupo 5



    

2 comentários:

  1. Ótima crônica! Vi que você leu meu comentário no fórum. Gostei muito do texto.

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  2. Gostei muito de sua crônica! Comecei a me interessar mais por elas.

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